terça-feira, 23 de março de 2010

"é perto, mas é longe"

[banksy ©]


sáb.20 mar. 10
entre Lx e Silves

páginas de horas vazias. sem ensaios ou ensejos de coisa alguma. e qualquer infíma escrita perde-se em toda essa ausência. ás vezes incomoda-me e consome-me. às vezes. muitas vezes. acabei de ler as palavras do António. E sobra-me sempre a vontade de o encontrar numa dessas ruas da cidade, sublimando um cigarro numa viagem sagaz tão sua. "`É perto, mas é longe" . eu e ele, perto, mas longe. tantas coisas e pessoas, perto, mas longe.
é um duo dissonantemente real. e ignorado. esquecido. minorado. todos e quaisquer entretantos que separam o perto do longe são estupida e racionalmente vagos. e dessa abstracção nada mais há que a fixação e vontade de chegar. muitas vezes, mesmo aqui as chegadas. e ainda longe.

quinta-feira, 18 de março de 2010

D. Roberta e Tobias

[ana pacheco ©]

9.43h. 18.mar.10. lisboa.

a rua subia íngreme. das trinas. sem cansaço e na velada composição matinal. pequenos laivos de ouro ofuscavam-na, no seu crecendo, ainda assim, escura sub os pés. demora-se a luz, na esquina, e aguarda-se na penumbra da escassez duma outra. guarda-mor. numa fronteira dúbia e não instituída, cruzo as duas. e a porta rasgada em verde do branco que se impunha deteve-me. número 2. um tobias em perfeito equilíbrio aconchegado na luz, ainda, rasante na sua tez branca e negra. do escuro de dentro, surdamente, escutei um bom dia. assim li nos lábios cobertos pelo breu. uma D. Roberta - porque acho que tinha cara de Roberta - de quem apenas vislumbrei o cabelo branco, branco, e a força da fragilidade dum olhar moído pelo tempo. às vezes, sem perdão, auguro. Branco e negro, também lá dentro. branco e negro, também na vida.
desço pela escassez que sobra da rua. viro à esquerda, nessa rua principal que não decorei, ainda, o nome. desenha-se com os eléctricos 25 e 28, no som metálico dos freios desengonçados. ele todo, desengonçado. singular, ainda assim. e o amarelo serpenteante ainda é mais amarelo com o amarelo do sol. "sr. carlos, uma bica, se faz favor."  inunda-se de luz sem licença (com toda, se faz favor!), despretensioso, este lugar à esquina encontrado. bebo-o compassadamente. o café. e o lugar também. a cidade tem aldeias dentro. lugares onde as palavras dos passos demoram. os sorrisos não se ensaiam. mercearia, retrosarias, sapateiros. e os senhores carlos, maneis e antónios desta cidade. ou as robertas, as marias e as isabeis que me sabem o nome. ou respondem sem pergunta.

não se me dissipa do pensamento a imagem dum tobias duma senhora roberta. do branco e do negro. amanhã pergunto-lhe o nome. e do gato também.

quarta-feira, 10 de março de 2010

sprang



[algures entre estocolmo e kiruna]

escreveste-me há dois dias. já me tinhas escrito há mais dias, que fazem meses, mas não te escrevi resposta. acto inadvertido e involuntário. mas nesses mesmos há dois dias, sentei-me e escrevi as palavras numa língua que não é minha. nem tua. é um encontro anglo-saxónico entre a génese latina e a germânica.

encontro. entrei naquele comboio em estocolmo numa gélida manhã do prelúdio do ano. antes, deslumbrava-me com a imensidão da estação central e aconchegava-me saber que iria escrever em tempo real uma das mais marcantes experiências que tive. não o sabia, então. aleatoriamente, sentei-me junto da janela. sempre junto da janela, porque gosto de ver. e, verdade, que saindo de estocolmo, só iria ver neve. em espessura e cores que nunca tinha visto rematada pela imponência de árvores que não lhes sei os nomes. pontualmente, rompia-se a monotonia duma esrita palete de cor, para variar em encarnados escuros. as casas. sozinhas.

seriam dezassete horas confinada àquele espaço transversalmente exíguo, longitudinalmente imenso. levantei-me variadas vezes, regressando ao lugar primeiro que me tinha acolhido depois da partida. houve a vez em que me sentei à tua frente. e foi esse o lugar que mantive até à chegada.


perguntaste-me o trivial em início de conversa. em crescendo, o diálogo arrancou a distância geográfica que nos separava no início para, naqueles metros quadrados deslizantes, saber-te próximo de mim. frente a frente. em diálogo. falaste-me duma imensidão de coisas que ainda hoje recordo. em coisas triviais. devolvem-se-me as memórias àquela cadência temporal que ousaste quebrar. saiste numa qualquer estação com um nome estranhíssimo. continuei. não sem antes te despedires com um forte abraço e me teres feito prometer que te enviaria a foto que tirámos. enviei. e enviei-te, agora, novamente. segui o caminho, onde a neve me esperava e temperaturas que julgava apenas existirem em (hist)estórias também. mas esperava-me a promessa defraudada duma aurora boreal não fosse a tempestade de neve que se arrancou das entranhas duma terra anunciada de ninguém. a demora duma luz em fim de dia refractava-se nas cores quentes que aquele lugar não augurava.


a tua figura ecoou-se-me durante esses dias no lugar perdido num círculo polar. estava certa que o nosso encontro se extinguira naquela fracção de tempo. quase que poderia ter assegurado este mundo e o outro em como não te voltaria a ver. já regressava depois de ter visto novas cores e ter sentido um novo frio. o comboio arrastava-se longamente no infinito dos carris que me devolveriam a estocolmo. parava ocasionalmente numa dessas estações. e, mais demoradamente, parou numa. e uma vítrea batida rítmica acordou-me do sono que me trazia desde há umas horas atrás. olhei, sem perceber quem se enevoava no bafo embaciado sustido pelo vidro. juro que não liguei. continuava. em recurso desesperado, entras no comboio  - e não sei descrever a felicidade que te carregava na altura. abaçaste-me longamente. e disseste-me que tinhas ido esperar o comboio para que me visses uma outra vez. e viste.

há dois dias escreveste-me, e, agora, respondi-te. tens-me escrito uma e outra vez, e várias vezes, muitas vezes, e muitas vezes te respondo. todas as vezes, até à última que faltei com a resposta.

naquele dia, Kiruna, 20 de Janeiro 2008.
hoje, Sintra, 10 de Março 2010

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give me the words...

sábado, 6 de março de 2010

mem*tick


faço questão de perpetuar uma mania antiga dum certo coleccionismo, a roçar o doentio, de momentos da minha vida. depurando-se ao longo dos anos,e  tornando-se menos radical, sempre guardei toda a parafernália de pedaços de papel que me remetessem ao tempo e lugar dum determinado momento. no início eram desde recortes de jornais de dias específicos (aliás, eram os jornais inteiros que guardava), facturas (!!?!?!?) etiquetas de roupa, bilhetes (exposições, concertos, eventos, cinema, avião, etc), pacotes de açúcar.... Presentemente reduzo-me a guardar bilhetes. de tudo.

um dia dos que passou, deparei-me com este mundo de memórias, religiosamente guardado numa das gavetas em explosão iminente. sentei-me. e acolhi-me num lugar da memória que me deixa o o doce sabor de as ter vivido duma forma tão intensa. acontece que, aquele pedaço de papel quase me materializa a realidade em que aconteceu. são bilhetes eles próprios, e bilhetes novamente quando me levam. e as pessoas que estavam. e as que nunca estiveram. e também as que gostava que estivessem. verdade. são momentos particulares. com luzes, cheiros e imagens que permanecem. são pequenas vicissitudes mundanas que me fazem querer que partilhasse aquelas fracções de segundo com determinada pessoa. as luzes que esmorecem e mais um fim de espectáculo, que inicia um outro. são essas cadências, quiçá metafísicas, que me devolvem aos lugares.

há grandes momentos revelados secretamente em cada fragmento de papel. de todos os que aparecem a inaugurar estas palavras. e de todos os outros que não se vêm. do frio polar de Kiruna e Nikkaluokta ao tropicalismo duma república dominicana existe toda uma amplitude térmica de vivências que me marcaram. Recordo o chocolate quente em amesterdão com o Pedro e a Ana, num lugar saído duma década longíqua de 20; a minha incursão solitária (porque gosto) pelas ruas dessa mesma cidade e as emoções de cheirar a vida de Rembrandt e Anne Frank; o Stedelijk em obras e temporário com a comemoração da Magnum; a chuva no alto de St. Paul's; a lareira acesa por um autóctone em -32ºC de Nikkaluokta; a luz vibrante de la Pedrera ao final da tarde; um regresso à infância em Ultrecht; o deslumbramento da Tate Modern; a magia de Escher; a sombra tão íntima do Hot Club; as cores vivas ao sol dum final de tarde em Veneza; sentir o meu coração parar no Maurithuis com Vermeer; a viagem absoluta do espaço da Vieira da Silva; o eco perpétuo de Peal Jam; as longas horas passadas em comboios; as incursões e deambulações urbanas que me enchem e preenchem; entre estes pontos existem tantos outros  nos entretantos que recordo.

Vivi cada um deles, e todos os outros compreendidos em cada intervalo, da maneira intensa que para mim faz sentido. E isto, com o imenso significado que se engrandece, faz-me querer viver sempre mais. e intensamente. aqui e noutros sítios. contigo ou simplesmente na minha confortável solidão.


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quinta-feira, 4 de março de 2010

eis o conto de fadas em que a vodafone faz acreditar os demais...


eis como a mediática vodafone retrata a classe dos arquitectos. vamos por partes:

1. "COMO FIQUEI RICA A BRINCAR ÀS CASINHAS" - a recibos verdes?.... digam lá como!
2. "sou arquitecta e divirto-me à grande a fazer maquetes!" - menos mal, a única frase com sentido.
3. "quando acham graça, pagam a sério" - quando acham graça?!?!?!........... e quando pagam...


é escandalosamente rídicula a forma como o que fazemos é exposto neste anúncio. uma sugestão aos marketeers da vodafone: primeiro aprendam a fazer um trabalho baseado na realidade da maioria o que implica que para a próxima contactem a grande percentagem de arquitectos que não é rica, que não brinca às casinhas, que se diverte a fazer maquetes, que não tem clientes que acham graça nem que pagam a sério e depois olhem pá $%&#@ que fizeram e pensem se anda perto da realidade. obrigada.

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segunda-feira, 1 de março de 2010

já explicitei variadas vezes a minha contestação face à instituição igreja católica e demais súbditos, e hoje existem novamente argumentos: quando estamos perante uma verdadeira crise humanitária de escala global, revolta-me saber que SÓ o custo do palco para a visita do chefe supremo do estado do vaticano, vulgo papa, a Lisboa será de 200.000 euros. qual é o difusor das máximas da "humildade, despojamento e ajuda ao próximo" que permite uma coisa assim? com certeza não tem o nome de joseph ratzinger.






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[ana pacheco ©]

Falemos de casas, do sagaz exercício de um poder
tão firme e silencioso como só houve
no tempo mais antigo.
Estes são os arquitectos, aqueles que vão morrer,
sorrindo com ironia e doçura no fundo
de um alto segredo que os restitui à lama.
De doces mãos irreprimíveis.
- Sobre os meses, sonhando nas últimas chuvas,
as casas encontram seu inocente jeito de durar contra
a boca subtil rodeada em cima pela treva das palavras.
..................
Estas são as casas. E se vamos morrer nós mesmos,
espantamo-nos um pouco, e muito, com tais arquitectos
que não viram as torrentes infindáveis das rosas, ou as águas permanentes,
ou um sinal de eternidade espalhado nos corações
rápidos
- Que fizeram estes arquitectos destas casas,eles que vagabundearam
pelos muitos sentidos dos meses,
dizendo: aqui fica uma casa, aqui outra,aqui outra,
para que se faça uma ordem, uma duração,
uma beleza contra a força divina?
..................
Falemos de casas como quem fala da sua alma,
entre um incêndio,
junto ao modelo das searas,
na aprendizagem da paciência de vê-las erguer
e morrer com um pouco, um pouco
de beleza.

Herberto Helder